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O brilho azul e mortal do césio-137




O brilho azul da morte. Há 30 anos, Goiânia vivia, talvez, uma de suas maiores coberturas jornalísticas. Era 1987 e diversos pontos da cidade – e até de outros municípios – foram atingidos pelo brilho azul e mortal do césio-137. O acidente mobilizou jornalistas de todo país.


Era manhã de um domingo de inverno quente e seco do cerrado. O dia? 13 de setembro. A peça de chumbo e metal que tinha a cápsula de césio foi levada do antigo instituto goiano de radiologia, na Avenida Paranaíba, no centro de Goiânia, para a casa de um dos catadores que viviam pela região recolhendo objetos para revender. Dias depois, a peça foi revendida para Devair Ferreira e, em 24 de setembro, depois de desmontar o aparelho a golpes de marreta, Devair fez questão de mostrar a novidade para a esposa, Maria Gabriela, e todos os outros familiares e conhecidos. O irmão de Devair, Ivo Alves Ferreira, foi visitá-lo, e levou fragmentos do pó reluzente de césio para a casa da família.

Devair estava encantado com a luz que o elemento químico emitia e mostrou o césio para a filha, Leide das Neves. A garotinha foi a primeira vítima, e se tornou símbolo do acidente quando seu caixão de 500 quilos coberto de chumbo chegou ao Aeroporto Santa Genoveva para seu corpo ser enterrado, em meio a protestos, no Cemitério Parque.


O sofrimento da garotinha que se encantou com o brilho azul emitido pelo elemento se tornou o símbolo da tragédia goianiense, que fez quatro vítimas fatais e centenas de sequelas físicas e psicológicas. A menina Leide havia ingerido as partículas de césio ao alimentar-se com as mãos sujas do pó, o que levou a contaminação a níveis incontroláveis. A garota morreu no início da noite do dia 23 de outubro. O nível de contaminação até não havia sido observado pela medicina nuclear. No hospital, quando seu quarto estava às escuras, o corpo de Leide mostrava uma aura azulada pelo efeito do césio que continuava a irradiar.


Até os médicos tinham que se aproximar dela com precaução para não se contaminar. Nos últimos dias de vida, Leide não respondia aos testes, se alimentava por via parenteral e sofria muito com febre alta constante, diarreia, sangramento nos olhos e nariz, e quadro hematológico muito grave. No mesmo dia, Maria Gabriela Ferreira, sua tia, também veio a óbito. As duas estavam internadas no hospital naval, no Rio de Janeiro, mas não resistiram à contaminação. Dias depois, morreram Israel Batista dos Santos e Admílson Alves de Souza. Os dois eram empregados do ferro-velho e também estavam internados no Rio.




A cápsula encontrada pelos catadores pesava 19 gramas apenas, mas foi suficiente para contaminar dezenas de pessoas ao todo, de acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear, o CNEN. O socorro às vitimas aconteceu somente 16 dias após o início do acidente, quando a vigilância sanitária e a Secretaria Estadual de Saúde souberam da cápsula, que foi levada por Maria Gabriela Ferreira, com 37 anos na época, aos órgãos competentes. Todos que tiveram contato com o pó começaram a sofrer com náuseas, vômitos, tontura e diarreia, mas ninguém sequer imaginou que o mal-estar tinha algo a ver com o aquele pó tão reluzente.


Em 30 de setembro, técnicos do CNEN e policiais militares goianos começaram a realizar um trabalho de descontaminação de Goiânia. Naquele momento da tragédia, mais de 112 mil pessoas foram monitoradas. Ao todo, 129 estavam gravemente contaminadas. Na época, 6 mil toneladas de material contaminado foram para um depósito especial em Abadia de Goiás. Oficialmente, 4 pessoas morreram devido à exposição à radiação. Mas, de acordo com a associação de vítimas do césio-137, o número de vítimas é bem maior e pode chegar a 80.

Foi necessário executar na capital um sistema de monitoramento dos efeitos da exposição à radiação nas pessoas que foram vítimas do acidente. Em fevereiro de 1988, o governo do Estado de Goiás criou a Fundação Leide das Neves Ferreira, posteriormente transformada em Superintendência Leide das Neves Ferreira. Foram definidos grupos de pacientes, de acordo com normas internacionais, que consideram como critérios de classificação a gravidade das lesões cutâneas e a intensidade da contaminação interna e externa. Foi determinada a metodologia dos protocolos de acompanhamento médico.


Atualmente, de acordo com o Tribunal de Justiça de Goiás, há 371 registros de despachos e sentenças contendo o termo “césio-137”, e 238 em acórdãos e registros. Em regra, as ações são pedidos de pensão, remédios e inclusão no Instituto de Assistência aos Servidores Públicos do Estado de Goiás – o IPASGO. Qualquer pessoa que apresentar alguma moléstia crônica em qualquer momento da vida, em decorrência do contato com o césio, pode lutar na justiça por direitos.


O crime prescreveu em 2005. Mas, antes disso, 3 médicos responsáveis pela clínica abandonada, mais um físico e o dono do prédio, foram condenados em 1996 homicídio culposo – quando não há intenção de matar. Os médicos Carlos Bizerril, Criseide Dourado e Orlando Teixeira, além do físico Flamarion Goulard, receberam a pena de 3 anos e 2 meses em regime aberto de detenção. Em 1997, a pena foi substituída por serviços comunitários. O dono do prédio, Amaurillo Monteiro, foi condenado a 1 ano e 2 meses, depois conseguiu a suspensão da pena. Em 1998, todas as penas foram extintas por um indulto presidencial.


Foram várias as lições aprendidas com o maior acidente radiológico do mundo, principalmente a que trata da responsabilidade em conhecer as consequências de se lidar com ciência e tecnologia, e ampliar os cuidados que priorizam a ética e o respeito à vida. Segundo a Agência Internacional de Energia Nuclear, o Brasil foi o primeiro país do mundo a conseguir mapear toda a produção e uso da energia atômica em seu território, graças ao ensinamento dessa tragédia. O acidente atingiu a alma do goianiense, mas foi o preconceito que feriu. 30 anos depois, o maior desafio é preservar a memória para que nunca mais se repita. Bem… o Jornalismo serve pra isso.

Fotos: reprodução.


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