10 de Abril. Naquela terça-feira, vários pais assumiram o compromisso de aprontar seus filhos – de idades entre 5 a 11 anos – e levá-los a uma aula de campo cultural. As crianças do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE) da Universidade Federal de Goiás tiveram o privilégio de ter um momento com um dos maiores violonistas e compositores do país. Os pequeninos, antes mesmo de entrar, corriam e gritavam em bandos enquanto a noite caía. Por volta da 19h30min, já não se importavam mais com a espera, uma vez que transformaram o tédio em pega-pega. Os pais, próximos a porta, reclamavam com os seguranças e organizadores sobre o atraso que todo evento carrega como fardo.
A algazarra na porta do Centro de Eventos Professor Ricardo Freua Bufáiçal, no câmpus II da UFG, não cessava. A imprensa, com os seus crachás de autorização, ali, era a menor das prioridades. Justo. A porta se abrira. Os filhos, chamados por seus pais, correram para dentro do espaço com tamanha euforia que, olhar para trás em preocupação aos adultos, nem os passara pela consciência. Logo tomaram posse das cadeiras. Uns subiram em cima, outros deitaram, arrastaram-nas, – no ver de um garotinho as fileiras estavam tão retas que se faziam 'bobas' – alguns simplesmente as dispensaram e continuaram a brincar.
O espaço entre o público e o palco era mínimo. Só um corredor, de no máximo dois metros para a circulação de fotógrafos, fora deixado. Era de se esperar, o show que inauguraria a temporada 2018 do Música no Campus (parceiro da Unimed) teria um público de dentes de leite. A primeira aparição do artista da noite se deu com a passagem de som. Enquanto isso, só os repórteres, crianças e pais eram público das afinações de cordas. “Toquinho! Eu vi o Toquinho! ”. Descoberto entre as cortinas por uma menina, que logo correra para seu grupo de amigas para contar a boa nova. “Ele já chegou, eu juro que vi!”. Confissão: até mesmo o jornalista que vos escreve não se atentou.
De fato, com os pés sobre o palco e violão nos braços, Toquinho é acolhido pela pureza das crianças. Orientados pelas pedagogas ali presentes, a gurizada subiu em fila em direção ao palco. Previamente educados, arrisco dizer que tiveram dias de estudos e ensaios acerca das canções Aquarela e O caderno. Obras que ali, de frente ao músico, foram cantadas em coral. Os pais se emocionavam e, com seus smartphones, gravavam tudo.
Foto: Johan Pedro
Vez dos entrevistadores, subimos ao camarim. Uísque, a água sobre a mesa. Camilla Faustino, sua parceira, nos recepcionou graciosa – de presente me deu um beijo no rosto. Grande mulher. “Boa noite, fiquem à vontade”. Aproveito e já a indago por onde começaram a turnê que, apesar de já durar dois anos, segundo ela, ainda está só no começo. “A estreia foi fora do país. Bogotá, Colômbia. Ele não vai se livrar tão cedo de mim”, disse, aos risos. Em coletiva, Toquinho responde sobre suas influências de quando menino e o quanto essas mesmas contribuíram para quem é hoje. “São muitas! O artista carrega uma trajetória rica de pessoas. Primeiros professores, amigos, ídolos, ídolos que se tornaram amigos! Esse acúmulo de experiência não para. Tudo que já foi me dado, vou levar para o resto de meus dias. As crianças, mesmo de hoje, me somaram uma experiência maravilhosa. São muitas pessoas envolvidas. Vocês estão comigo, ora!”.
Incitado pelo mais jovem da sala, o compositor profere sobre as transformações que a música sofreu durante esses quase meio século de carreira. Se ajeita na cadeira. Sobe a mão no queixo, sorri e com prioridade responde: “Ah, transformações são eternas! Peguei muitas fases da música quando o Brasil era grande. Hoje a internet o fez pequeno. Há cinquenta anos atrás a música nordestina e sulista de fronteira eram distantes. Enquanto houver fusões de ritmos, melodias e letras, essas mudanças não vão parar. Inclusive, ontem mesmo gravei um blues. Experimentei um violão acústico em improviso, nunca tinha feito. E o estudo não para. Me obrigo a tocar bem todos os dias melhor do que ontem, e toco. Me sinto jovem em cima do palco. Não perco essa vontade que é constantemente renovada. Caso contrário não estaria aqui, mas sim numa cadeira de balanço. Depois de acordar, uma das primeiras coisas que faço, depois do xixi, é tocar violão”.
Foto: Leila Soares
Acompanhando a locomotiva que tinha como assunto alterações na cultura, o músico foi abordado em relação ao novo questionamento do STF em relação a identificação profissional de músicos e artistas. “Não estou sabendo. Você jura? Me lembro que na década de 70 a ordem dos músicos exigia algo parecido, como uma carteirinha. Tínhamos, mas não portávamos. Ridículo. Uma vez estava eu e Vinicius – o consagrado poetinha – num ginásio lotado para um show e fomos barrados. O argumento era justo esse, de não ter a carteirinha”. Continuou com ar de deboche. “Imagine vocês, Vinicius e ordem dos músicos. Ele disse ‘você [representante da ordem] que vá falar para todo esse povo que não haverá show por conta de um papel’. Depois disso o cara foi embora! Quando se esbarra na burocracia, a arte sofre. O artista é um pássaro”.
E a dificuldade na ditadura? Os artistas de hoje aproveitam a liberdade conquistada? – Interrogou da esquerda, o colega jornalista. “Existe um paradoxo delicado em relação a isso. A ditadura foi boa para alguns músicos em relação a carreira. As amarras os forçaram a serem criativos, alavancando assim seus caminhos. Artistas que foram obrigados a encontrar alguma saída, tiveram auge na época da ditadura, depois disso até murcharam”. Avisado que as perguntas estavam encerradas, com educação, meti o pé na porta. Por favor, só mais uma de suma importância – insisti com o produtor. Camilla estava ali do lado, sentada em sua cadeira, filmando a entrevista. Portava o penteado rabo de cavalo e franja sobre os olhos. Dava risada a cada comentário cômico. O batom vermelho só magnificava mais seus lábios. De pele parda, suas pintas a marcavam como quem deixa um pinguinho de tinta cair num pedacinho azul do papel. E essa conversa entre você e essa nova geração de artistas? Assim como o intercâmbio com Tiê e Camilla – nesse instante meus olhos foram de encontro aos dela – os outros são críticos? Poetas?
Ela, interessada na resposta, tirou seus olhos de mim e voltou-lhes a Toquinho. O dente do ciúme já havia me mordido. “É um barato! Ela precisa se esforçar, pois sou mais jovem!” Esparramaram-se gargalhadas. A moça, prontamente completa “Muito mais!”. Ele volta a dizer que “é maravilho mesmo! Sobre a Tiê, ela compõe por minha causa. Disse a ela para não estudar violão e se manter nessa ‘precariedade’ de quatro acordes, para criar uma linha singular. Já a Camilla conheci pelo Mauricio Mattar, no programa do Raul Gil. Verifiquei alguns de seus vídeos na rede e pensei ‘não é que essa goianiense canta bem mesmo?’. Daí a convidei para fazer um teste final, ela fez dois gols e nós ganhamos a partida! Além de tudo ela é musical e isso é muito difícil. A Camilla, sem dúvidas, é. Por isso a facilidade e o prazer em trabalhar com ela”.
Sozinho, volta ao palco com a mesma camiseta preta e calças jeans. Iniciou tocando, sem cantar, o hino do Nordeste. Luiz Gonzaga se emocionaria com a homenagem. Suas unhas pontudas de violonista, puxavam as cordas, fazendo com que a caixa oca se parecesse com o acordeon. De autoria dele e Chico Buarque, Samba pra Vinicius foi primeira música a cantar. “Era um casamento sem sexo, ele dizia!” se referindo ao amigo. As melodias infantis começam e a A rua dos bobos contagiou todos aqueles que um dia cantaram isso quando criança. Prosseguiu com O pato. Entre 'fás' aqui, e 'sóis' acolá, o artista se atrapalhou na letra, se esquecendo de alguns versos. Humorado, ao finalizar a canção ele confessa “esse pato pateta me desconcertou!”.
Foto: Johan Pedro
Era a vez dela, de saltos finos e vestido azul bebe. Com sua presença, do público roubou-lhes atenção. Os cortes de seu vestido faziam com que o tecido, de modo suave, bailasse ao ritmo. Não só dançava xotes, forrós, sambas, bossa nova e MPB, mas também atuava. A interpretação musical de cada modinha era motivo de sorriso bobo de Toquinho. Maravilhado. A tristeza condensada com o amor, foi representada pelo Samba em prelúdio. “Vinicius dizia que se sentia muito mais inspirado quando estava triste. Entres tristezas que iam e viam, sabia extrair o melhor delas”. Camilla, com sua estrondosa voz, arrancou lágrimas daqueles que, um dia, já sofreram a perda de um grande amor.
Ao fim, trouxe a simplicidade de Aquarela. Comentou que não sabe responder ao certo o porquê do tão grande afeto das crianças com essa música. “É uma música fatalista. Inicialmente não foi pensada para o público infantil, mas sim para uma novela. No início é bem lúdica e entendo o apresso das crianças, porém depois ela a traz a destruição, onde tudo vai descolorir. Onde o futuro chega sem pedir licença, muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar”. Em seus planos, o show acabaria ali, mas não contara com o grito de “bis” da multidão.
Gênio que só ele, respondeu o pedido com Trem das onze, cantando os versos "Não posso ficar nem mais nenhum um minuto com você”. De detalhe, um “Fora Temer!” desabrochou, contagiando todos. Correram de volta ao palco e cantaram finalmente a última. “Esta, eu e Vinicius fizemos para mandar os generais da época de chumbo para aquele lugar. Já que não podíamos, mandávamos para Tonga da Mironga do Kabulete”. Naquele instante o manifesto gritava e a poesia, que tomava Vinicius de Moraes como santo, respirava.