O auditório ainda estava escuro por volta das 20:30 quando centenas de pessoas se aglomeravam no Centro de Eventos Professor Ricardo Freua Bufáiçal, da UFG, no Campus II, na noite desta última terça-feira (13). A multidão aguardava Lenine, que entrou na companhia da banda alguns minutos depois, causando euforia. Após dois anos de turnês com obras do seu último álbum, Carbono, o artista chegou em Goiânia surpreso. “Só devo terminar esse projeto no final do ano, olha que loucura, que país imenso!”, disse em entrevista ao Programa Matéria-Prima, poucos minutos antes do show.
A apresentação estreou a volta do projeto "Música no Câmpus", organizado pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura, após um ano de hiato. Em 2016, o projeto, até então feito em parceria com o Sesc, foi congelado devido a crise político-econômica e aos cortes orçamentários. Mas voltou agora em parceria com a Unimed e já ensaia trazer outras duas atrações ainda neste ano.
“Do ser ao pó, é só carbono
Solene, terreno, imenso
Perene, pequeno, humano”
A causa e o Pó - Lenine
Composto por onze faixas, o disco foi feito em parceria com seu filho Bruno Giorgi, além dos grandes Marco Polo e Nação Zumbi, banda de rock pernambucana com forte carga nordestina. “É uma das melhores bandas do mundo”, diz o artista versátil, que tem inspirações que vão de Led Zeppelin ao Jazz. Questionado sobre se já pecou ao mixar elementos do jazz clássico com rock nordestino, ele gesticula as mãos em tom de desleixo e solta: “eu lá tô preocupado com isso não. Pra ser honesto, eu faço para agradar entre oito e dez pessoas. São os meus filtros, quando passa pelo crivo deles, tenho certeza de que vou alcançar milhões.”
Com longas pernas finas sustentando um tronco de ombros largos, o pernambucano é um personagem que lembra o mar - seja por causa dos traços e trejeitos de um típico jovem surfista ou pelos olhos azuis de tom profuso. As 58 anos, ele mantém os cabelos castanho-claros varrendo as costas e uma jovialidade que ecoa pelo vocabulário malandro: é desprendido, não hesita em xingar, tem riso frouxo, às vezes fala em tom eufórico, por vezes soa irônico, mas sempre muito atencioso com seu interlocutor.
“Não serei seu
você não será minha?
Serei sempre só
você sempre sozinha?
Ou de outro modo
muda-se a crença
A gente se junta
e dança na diferença”
Grafite Diamante - Lenine
Nascido em recife e habitante do Rio de Janeiro, acumula 30 anos de carreira com dez discos lançados e cinco Prêmios Grammy Latino, dentre outros. Suas letras versam sobre minúcias da vida, de experiências pessoais e coletivas além aflições existenciais com forte carga política e de crítica social. O título da última LP parte também de uma perspectiva particular: Lenine é formado em Engenharia Química. O carbono é capaz de formar substâncias distintas a partir de diversas combinações moleculares, fenômeno chamado de alotropia na química e de parceria na vida. “Divido as letras com poetas, compositores. No ato da composição eu posso desempenhar um papel mais musical do que vernacular, ou vice-versa, ou podem ser simultâneas”.
O artista já contou que seu segundo álbum, Olho de Peixe,de 1993, permitiu-lhe descobrir que a música poderia levá-lo para qualquer lugar no mundo. Passados mais de duas décadas, ele revela que já conheceu todo o planeta. Ou quase. “Só falta conhecer a Oceania, preciso ir lá por causa das orquídeas. Como aquela região se separou muito antes de Pangéia, elas tiveram uma evolução completamente diferente. As plantas de lá são...preciso ir lá”.
“Eu sei de todo caminho que andei
Sou feito de barro batido e berro
Sempre topei com madeira de lei
A ciência já me fez cupim de ferro”
Cupim de ferro - Lenine
Quanto à aguda turbulência política e econômica que o Brasil enfrenta, Lenine não hesita em afirmar que o impacto em sua obra é “totaaal, afeta da mesma maneira que afeta você, com uma certa miopia”. Respondo que no meu caso a miopia é literal. Ele rebate: “ A minha também, tenho dois graus num olho e 1,75 no outro.” E continua: “A gente tá vivendo um momento que nem com bola de cristal poderíamos imaginar um presidente postular. Agora tentando tirar e ele não sai, não sai, não sai. E um Gilmar [Mendes] boca de sapo.” Ele gargalha. “Hoje eu tô inspirado. Desculpa mas chegou a hora”, diz, antes de posar para selfies com alguns produtores culturais que o circulavam.
Calçou sapatos pretos. Substituiu o short tactel florido por uma calça jeans e a camiseta preta por uma branca de manga longa com estampa de uma estrutura de carbono. Surgiu no palco e cantou tanto as músicas do último álbum como algumas clássicas de sua carreira: “Hoje eu quero sair só” e “Paciência.” O público bradou ‘Fora Temer’ duas vezes enquanto Lenine regia o coro gesticulando com os braços. Após cerca de duas horas, a banda se despediu, e as luzes apagaram.
Fotos: Pedro Lopes