“Relaxar o cabelo é que nem ser preso. Você fica numa jaula. Seu cabelo manda em você.”, diz uma personagem do romance Americanah, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, à protagonista Ifemelu, que para conseguir um emprego nos Estados Unidos, recorreu pela primeira vez na vida ao alisamento de seus cabelos crespos, anteriormente mantidos em tranças.
A citação da página 226 do romance resume uma situação vivida por muitas garotas e mulheres que recorrem ou já recorreram ao alisamento de cabelos cacheados e crespos. Não poder mergulhar na piscina, ter de correr da chuva, tomar banho com todo o cuidado para garantir que os fios não molhem e que o trabalho de estirar o fio não seja perdido. Toda mulher que alisa o cabelo por meio de escova, chapinha ou procedimentos químicos enfrenta constantes dificuldades para manter esse alisamento – e junto com ele, a ideia de estar dentro do padrão de beleza, que impõe o cabelo liso como único bonito.
Hoje, pessoas que alisaram os cabelos durante anos estão assumindo os fios como eles realmente são, e isso não tem nada a ver com moda. Trata-se de uma questão de ser quem realmente se é, de romper com padrões de beleza cruéis, de desafiar preconceitos entranhados há séculos na nossa sociedade e também de afirmar-se politicamente.
Autoestima
Pessoas com cabelos cacheados ou crespos (especialmente mulheres, de quem a "necessidade" de ser ou estar bonitas é muito cobrada) crescem ouvindo que seus cabelos são feios. A expressão "cabelo ruim", geralmente usada para descrever cabelos que não são lisos, é preconceituosa e tem um contexto racista. Ouvir coisas como essa desde a infância prejudica intensamente a autoestima dessas pessoas, e é necessário um longo exercício de empoderamento e autoaceitação para que o cabelo como nasceu deixe de ser visto como feio.
O processo pode levar meses quando o cabelo é alisado quimicamente. As formas de recorrer a isso são diversas: apenas deixando de alisar, cortando uma grande porção dos fios, aplicando tranças ou dreadlokcs. O período em que a química é retirada do cabelo e os fios voltam ao seu estado normal é denominado “transição capilar”, e a experiência é diferente para cada pessoa.
Quem resolve deixar de alisar costuma ouvir frases como: “Você ficava mais bonita(o) de cabelo liso”, “Não gosto do seu cabelo assim”, entre outros comentários invasivos. É aí que o empoderamento se faz mais necessário, e para isso a internet é uma boa ferramenta: é na rede que se encontram grupos de pessoas que decidiram assumir os cachos ou o crespo, e virtualmente são compartilhadas experiências, técnicas de cuidados, e muitas fotos de cabelos que foram recuperados dos danos causados pelo calor da escova e da chapinha ou pelos produtos químicos.
O YouTube tem sido uma plataforma essencial para isso, onde é possível encontrar desde desabafos sobre o quanto cabelo natural é discriminado, até resenhas de produtos cosméticos e vídeos específicos para retirada de dúvidas. Algumas youtubers que produzem esse tipo de conteúdo são Rayza Nicácio, Sá Ollebar (do canal Preta Pariu), Gil Viana e Nátaly Neri (do canal Afros e Afins).
Diferentes técnicas
Para assumir os fios naturais, é essencial conhecer que tipo de cabelo se tem. Nossos cabelos têm texturas diferentes, e são classificados em quatro tipos de curvatura, que diferenciam os fios entre lisos, cacheados ou crespos e suas variações. Os fios do tipo 1 (sem variação) são os lisos. Os do tipo 2 (A, B ou C) são variações de ondulados. Os do tipo 3 (A, B ou C) vão desde os cachos abertos e largos, com formato de espiral, até cachos bem definidos e cerrados. E os do tipo 4 (A, B ou C) são os crespos, que vão desde caracóis em forma de “S” até um formato que não define cachos. Cada tipo exige produtos e cuidados diferentes, que vão desde o corte até a forma de pentear.
A transição capilar pode ser acompanhada pelo cronograma capilar, uma rotina rígida para cuidados que alterna entre nutrição, reconstrução, humectação e hidratação. Embora possa ser usado em todos os tipos de cabelo, o cronograma capilar é muito útil para quem tem fios danificados por química ou colorações.
A fitagem é uma técnica de finalização, que define os cachos e diminui o frizz. Consiste em aplicar creme sem enxágue e pentear os cabelos com os dedos, com firmeza, mecha por mecha. Já o corte a seco evita um dos maiores problemas das cacheadas e crespas: o fator encolhimento. Quando cortados úmidos, cabelos cacheados e crespos apresentam um tamanho, mas quando secam e ficam definidos, parecem menores. O corte a seco evita o “engano” com o tamanho final do cabelo e uma possível decepção com o corte.
Afirmação política
Pare e pense: com que frequência você vê atores e atrizes, cantores e cantoras, políticos, intelectuais, escritores, professores, médicos, advogados com a cor da pele e tipo de cabelo parecido com o seu? Se você for negro ou negra, provavelmente vai perceber que quase não vê. Até pouco tempo atrás, pessoas negras quase sempre eram representadas na TV em posições de subalternidade. Hoje, isso tem mudado na mídia, e mais pessoas tem se sentido representadas por figuras públicas.
Representatividade é o que acontece quando uma pessoa comum se identifica com alguém que está presente na vida pública, seja pela aparência, profissão escolhida, opinião política, orientação sexual, entre outros fatores. A partir daí, a pessoa sabe que não está sozinha. É dessa forma que youtubers e blogueiros são muito importantes para quem está assumindo os cabelos naturais. Ao ver no Instagram uma foto da blogueira famosa que largou a progressiva depois de anos, milhares de garotos e garotas se sentem incentivados a aceitarem melhor a própria aparência.
Mas mostrar os cachos e crespos não se trata só disso. Em um país de passado escravocrata e que ainda conserva o racismo entranhado nas relações sociais, a autoafirmação é fundamental para a luta contra o preconceito. Essa luta vai desde a busca por ações afirmativas em universidades públicas, que busca diminuir a desigualdade entre os candidatos aos cursos ofertados, até a busca por representatividade na mídia e na publicidade em geral.
Mulheres negras costumam ter muita dificuldade em encontrar produtos cosméticos voltados para a cor de sua pele, como batons e bases. O fato de não existirem bases para os tons de pele mais escuros demonstra que pessoas negras sequer são consideradas consumidoras.
E criticar o mercado e a moda é algo positivo: se antigamente era difícil encontrar produtos como cremes, condicionadores e shampoos para cabelo cacheado, hoje eles estão se multiplicando cada vez mais nas prateleiras de farmácias, mercados e perfumarias. Tudo por causa da quantidade cada vez maior de mulheres que vêm abrindo mão do alisamento.
Dessa forma, mostrar o cabelo como ele realmente é não é só uma forma de poupar os gastos com cabeleireiro ou se sentir mais bonita. É dizer que pessoas negras existem, que não toleram mais ouvir que a cor de sua pele e textura de seu cabelo é feia, que querem ser representadas na mídia, ter suas pautas ouvidas na política e consumir produtos feitos para elas. É uma forma de lutar diretamente contra o racismo.
“Meu cabelo não é ruim, ruim é o seu preconceito”, é o que dizem diversos posts compartilhados amplamente por páginas voltadas para cuidados com cabelos cacheados e crespos. Todo tipo de cabelo é bom. Ruim mesmo é nos prendermos a padrões de beleza elitistas, racistas e eurocêntricos. Em contrapartida, que tome cada vez mais força esse movimento de homens e mulheres que querem se amar como são.
Imagem 1: Blog "Seja Subversivo"
Imagem 2: Reprodução