O livro Cem Anos de Solidão, diferente do expresso no título, caiu nas graças do povo há meio século, 50 anos. Em 1982, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura e atualmente já superou outro cinquentenário. Existem mais de 50 milhões de cópias vendidas.
A obra é a segunda mais importante da literatura hispânica, perdendo apenas para Dom Quixote. Aliás, o ponto em comum entre essas duas obras vai muito além de um ranking. Em Cem Anos de Solidão são trabalhados temas como a corrupção, as revoluções e até mesmo a loucura, o mal que muitos afirmam ser o problema de Quixote.
No entanto ouvinte, como é possível não enlouquecer vivendo em uma aldeia como Macondo? Ditaduras, guerras civis e a exploração em nome do progresso tomavam conta aos poucos desse lugar ficcional. Se eu te contar que esse livro foi publicado em 1967, acho que você vai perceber uma ligação nada acidental com certos fatos históricos.
Sim, não é à toa que o livro foi tão aclamado principalmente na América Latina. No período de lançamento, vários países latino-americanos, incluindo o Brasil, viviam em sistema ditatorial. Existiam, na época, 120 mil desaparecidos e 20 milhões de crianças mortas antes dos dois anos de idade.
O nome que assina tão brilhante história literária é Gabriel Garcia Màrquez, apelidado Gabo. Como jornalista, era acostumado a lidar com lados nada bonitos da realidade, porém transformava tudo isso em palavras que causavam e ainda causam reflexão no público leitor.
Gabo não possuía na mente apenas as próprias experiências. Quando pequeno, viveu com os avós maternos. O avô era um coronel e ex-veterano de guerra, enquanto eu e você ouvíamos diariamente historinhas dos irmãos Grimm e da Carochinha, o menino Gabo ouvia também sobre os horrores da guerra.
Mais tarde, Gabriel Garcia Márquez refinou ainda mais os conhecimentos anteriores, dando início a duas graduações. Eram elas Direito e Ciências Políticas, na Universidade Nacional da Colômbia, mas ele não continuou até a formatura.
O escritor e jornalista mesmo assim jamais interrompeu a procura pelo conhecimento, costumava ler e dividir garrafas de rum com amigos intelectuais sempre que podia. Nos livros carregados por Gabo, se notavam leituras como Ernest Hemingway, autor que exercia práticas jornalísticas, Virgínia Woolf e Franz Kafka, do qual teve forte influência.
Orgulhoso das raízes latino-americanas, Gabo aderiu ao realismo mágico nas obras que publicava. Aí percebemos a influência de Kafka. Essa corrente literária era nada menos que uma versão em nosso continente do realismo fantástico utilizado pelos escritores europeus.
O realismo mágico foi uma escolha bem apropriada para a narrativa. Nesse estilo, elementos ficcionais fantasiosos acontecem como parte da normalidade, sem causar qualquer estranhamento.
A peste da insônia e do esquecimento, por exemplo, mesmo sendo imaginários não eram vistos pelos personagens como absurdos. O foco é dado para acontecimentos bem reais como a corrupção e a violência retratados na obra e os quais ficaram impunes no período das ditaduras.
Por causa disso, o realismo mágico foi a principal arma de Gabo e outros autores na luta contra as ditaduras. As palavras disfarçadas de coisas que não existiam, podiam assim driblar a censura e abordar tranquilamente temas tabu.
Não podemos dar todo crédito à genialidade do autor, devemos sempre lembrar que o esforço tem papel importante. Gabriel Garcia Márquez resolveu dar frutos à frase que surgiu no pensamento dele em meados de uma terça-feira de 1965.
Para isso, juntou cinco mil dólares, entregou nas mãos da esposa, Mercedes e pediu demissão de dois empregos. Dessa forma pode se isolar em um canto da sala de jantar, o qual chamava de a cova da máfia, e começou a criar mundo com a máquina de escrever.
Circulam rumores de que em consequência dessa “ausência presente”, Gabo passou por complicações financeiras. O carro dele, as joias e utensílios domésticos da esposa, Mercedes, teriam sido penhorados. Empréstimos de amigos do casal foram o que ajudaram eles por um tempo.
Quando a obra terminou, o escritor tinha um saldo positivo de 352 páginas e outro negativo de dívidas. O aluguel da casa estava a 9 meses atrasado, o açougue 4 e a padaria, sabe se lá. A venda de 8 mil exemplares em 15 dias, provou que os débitos na verdade foram investimentos.
Existe uma tendência entre intelectuais de adotar o chamado macondismo. O livro de Gabo foi considerado tão verídico para tantos que virou prova documental dos acontecimentos daquela época na Colômbia, no Caribe e partes da América Latina.
Descobrimos por meio dessa narrativa a origem do nosso complexo de vira- lata que resiste. Infelizmente o que nós, latino americanos, insistimos em ver no espelho é um reflexo de inferioridade em relação aos chamados países desenvolvidos.
Diversas passagens de Cem Anos de Solidão provam, no entanto, nossa resistência e espírito de luta durante a construção das nações. Nesse tempo todo, tivemos vários heróis redentores que ousaram desafiar os regimes autoritários.
A mensagem do livro é assim mais positiva do que negativa. Confirmação disso é um pensamento que gabo deixa para os leitores e presentes na entrega do Prêmio Nobel de Literatura que recebeu.
“Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer. Onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade e onde as estirpes condenadas a Cem Anos de Solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra”.
A esperança de Gabo contida nessas palavras pode se concretizar. Mesmo após a morte do autor em 2014, as frases dele ecoam pelas multidões, comemorações do cinquentenário de Cem Anos de Solidão trazem de volta as emoções provocadas pela publicação em 35 idiomas e diversos lugares.
Inclusive em Cartagena, na Colômbia, país de Gabriel Garcia Márquez, em janeiro deste ano, 60 pessoas se reuniram para leitura coletiva de trechos da obra. 20 delas foram escolhidas por uma etapa de pré-seleção onde demonstraram interesse através do site da fundação Gabriel Garcia Márquez.
O escritor vive também, na grande honra que jornalistas podem ter de carregar um prêmio com o nome dele. O festival Gabriel Garcia Marquez, que ocorre em Medellín, Colômbia, premia os melhores trabalhos jornalísticos dos países iberoamericanos veiculados em espanhol e português.
Somos hoje como o personagem de Gabo que não reconhecia mais a Macondo em que nasceu. “perguntou que cidade era aquela e lhe responderam com um nome que nunca tinha ouvido, que não possuía significado algum mas que teve no sonho uma ressonância sobrenatural, Macondo”.
Imagens: Biblioteca de São Paulo, Pinterest e Iradex.