Por meio do Projeto Transexualismo, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás oferece, gratuitamente, tratamento psicológico e hormonal para transexuais em Goiânia. O tratamento também inclui a cirurgia de redesignação sexual, quando for necessária. De acordo com Mariluza Terra Silveira, professora da Faculdade de Medicina da UFG e coordenadora do projeto, a equipe conta com profissionais de diversas áreas como ginecologistas, cirurgiões plásticos e fonoaudiólogos e já foram realizadas, aproximadamente, 80 cirurgias desde a criação do projeto, há 17 anos.
Quem quiser iniciar um tratamento com a equipe do HC precisa ir até algum Cais de Goiânia, se consultar com um Clínico Geral que irá pedir o encaminhamento para o Projeto Transexualizador. Para fazer a cirurgia de redesignação de sexo, é necessário ter mais de 18 anos, mas o acompanhamento psicológico também é oferecido para crianças e adolescentes. O processo é demorado, pois há um número limitado de leitos e o tratamento é longo e exige, no mínimo, dois anos de acompanhamento psicológico e hormonal. Além disso, após ser feita a cirurgia, o paciente precisa de acompanhamento médico durante toda a vida, pois o uso de hormônios pode causar riscos à saúde.
A médica Mariluza Silveira reforça a importância da terapia psicológica, “a terapia não tem a finalidade de fazer a pessoa desistir da cirurgia, ela dá suporte emocional para coisas mais difíceis, como a discriminação”. Outro ponto que a coordenadora do projeto ressalta é a importância de seguir o tratamento rigorosamente, alguns pacientes não o fazem, tomando mais hormônios do que o necessário, por exemplo. Os pacientes precisam ter certeza de que querem fazer a redesignação de sexo, pois é uma cirurgia que não pode ser revertida. No HC, já houve dois casos de pessoas que desistiram de fazer a redesignação.
Iniciativa e desenvolvimento
A iniciativa para a criação do projeto surgiu em 1998, quando um homem trans e uma mulher trans deram entrada no pronto-socorro do HC, após tentarem se suicidar. Eles tentaram o suicídio, por “falta de perspectiva de poderem fazer uma cirurgia de redesignação”, afirma a doutora Mariluza. Nesta época, o Conselho Federal de Medicina havia liberado a realização destas cirurgias em caráter experimental. Então, sob sua coordenação e com iniciativa do próprio hospital, montaram uma equipe multiprofissional para começarem os atendimentos.
A médica afirma existir problemas, como os poucos profissionais que se interessam em fazer parte da equipe, o que fez com que o projeto fosse interrompido durante um período, após a saída de um cirurgião. Entretanto, ela vê uma evolução no espaço que o Projeto Transexualismo tem dentro do HC, “quando começamos, não tínhamos a aceitação que temos hoje, o projeto e os nossos pacientes passaram a ser respeitados”. Na sua visão, a população começou a aceitar os transexuais, mas ainda é algo insignificante frente ao preconceito existente.
Direito à saúde
Hoje, o estudante de Ciências Sociais com habilitação em Políticas Públicas e membro do coletivo de homens trans Resistência, Luca Alves, faz acompanhamento psicológico no Projeto Transexualismo do Hospital das Clínicas. Ele afirma que é um longo processo e a luta trans ainda caminha a passos lentos, principalmente no estado de Goiás. A lei para fazer a alteração dos documentos exige que a pessoa tenha passado pela cirurgia de redesignação sexual e demora pelo menos três anos “se ainda tiver a sorte de cair nas mãos de um bom juiz”, conta Luca e acrescenta que, hoje, no estado apenas duas juízas são favoráveis ao tema.
A questão dos transexuais desponta muitos outros aspectos sociais. A cada conquista uma nova luta se inicia. Em 2016, um grupo de pesquisadores mexicanos publicou um artigo na revista médica britânica “The Lancet Psychiatry” que demonstra que as mudanças na identidade de gênero não são uma doença. É previsto que, em 2018, a questão seja posta em discussão e que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retire o termo transexualismo da Classificação Internacional das Doenças (CID-11).
Este significaria um grande avanço, mas, para Luca, pode ser mais uma perda. O fato é que, a partir do momento em que a transexualidade não for mais considerada uma doença, a dificuldade para receber apoio e tratamento do Estado pode aumentar. Porém, o discurso a ser usado é o mesmo que para as mulheres gestantes, ou seja, gravidez não é uma doença, mas a grávida recebe cuidados, afirma o estudante.
Luta constante
Nascer em um corpo com o qual você não se identifica, viver para se encaixar em padrões, se entristecer, adoecer quando não é aquilo que a família, escola ou outras instituições sociais esperam que seja. Essa é a realidade de inúmeros travestis e transexuais que podem demorar anos para compreender que o erro não está neles, mas nos padrões impostos pela sociedade. Entretanto, mesmo quando um transexual descobre quem é realmente, não encontra descanso. A luta apenas ganha novo significado.
Luca contou que a pressão para se adequar aos padrões existia desde criança. Durante a adolescência, quando seu corpo começa a ganhar forma, tudo fica ainda mais complicado, principalmente quando se é um homem trans. “A partir do momento que eu comecei a mostrar meu jeito, que era mais masculino, começou uma perseguição e foi aí que eu senti a necessidade de mudar”, afirmou Luca. Ele acrescentou ainda que, na época achava que era uma garota lésbica. Esse tipo de confusão entre identidade de gênero e orientação sexual é bastante comum pela falta de informação sobre o tema. “Eu ainda me sentia vazio”, finalizou.
Querer parecer aquilo que não é pode gerar graves consequências à pessoa. Luca desenvolveu depressão e síndrome do pânico e, na época, os médicos demoraram por volta de um ano para dar o diagnóstico e começar o tratamento adequado. Com o tempo, o garoto passou a conhecer mais sobre o Movimento LGBT e pessoas do meio. Até então, ele nunca havia sequer conhecido uma pessoa transexual. Era uma possibilidade inexistente para ele tomar remédio para alterar o próprio corpo. Aqui, pode-se perceber a necessidade da representatividade na mídia.
É possível perceber que as batalhas dos transexuais são intermináveis nesta grande guerra contra o preconceito, porém a comunidade caminha unida.
Imagens: reprodução