Você pronto para mergulhar fundo dentro de um longa que retrata as profundezas da nossa mente e o que o sentimento e a intensidade do sentir faz com a gente? Não? Bom, eu entendo. Afinal, quando é que estamos prontos para viver? Quando estamos prontos para entender toda a complexidade que envolve o nosso mero ato de olhar nos olhos da pessoa que temos um carinho especial, por exemplo?
O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças é um daqueles filmes que te deixam confuso, mas te garanto que é uma boa confusão. O diretor Michel Gondry mexe na ferida que ainda não está cicatrizada, porém não de forma grosseira e repentina. A gente só percebe o desconforto do meio do longa para frente. Antes, temos a plena certeza de que aquela história entre o amor de duas pessoas apaixonadas tem tudo para não nos afetar. Que perfeita ilusão!
A história em linhas gerais é simples, mas nem tanto. Deixa eu te explicar. Joel, interpretado por Jim Carrey, descobre que Clementine, a ex-namorada interpretada por Kate Winslet, se submeteu a um estranho tratamento para esquecer todas as memórias pelas quais eles haviam passado como casal.
Então, como resposta, realiza o mesmo processo de esquecimento. Porém, se arrepende no meio do caminho e tenta reverter tudo o que já havia sido feito, ou seja, todas as memórias que estava prestes a esquecer. A história parece mirabolante, não é? Criada sob uma ótica ficcional que se distancia radicalmente da realidade. Até porque não há tratamentos para a perda de memória. Acontece, que por mais fantasiosa que pareça, a narrativa do filme atinge diretamente as nossas relações cotidianas. Dessa forma, percebemos claramente a manobra que o longa faz ao metaforizar a ficção no campo da realidade. Encarar as situações de frente exige coragem. Olhar nos olhos da pessoa que você ama ou um dia amou e dizer “não temos mais nada em comum, tudo o que lembra nós dois me machuca e por isso não podemos continuar esse relacionamento”, é torturante. Só de pensar em falar qualquer coisa do tipo já sobe um medo aliado à ansiedade, não é verdade?
Mas sabe o que é ainda pior? Não são nem as atitudes em si, porque as vezes no calor do momento acontece e você nem percebe direito que aconteceu. O problema é exatamente o que o filme retrata e que vem como uma consequência do instante passado. O problema são as memórias. São elas que ficam com a gente depois de tudo.
Num vislumbre, na recordação de palavras que foram ditas... não importa a manifestação, ficou conosco. Agora faz parte da gente, parte de quem nós somos, e isso assusta. Não importa a força que usemos para reprimi-las, pois, de uma forma ou de outra, elas surgirão dentro da nossa rotina diária. As memórias podem estar apegadas à imagem de um objeto, por exemplo. Se o vemos por aí, a tal da memória associa com aquele momento que você queria tanto fugir e pronto, lá está ela. Lá está a lembrança que você fez de tudo para esquecer.
O que nos resta as vezes é simplesmente encarar o nosso passado para que possamos criar instantes melhores no presente e no futuro. Esse confronto entre você e o seu passado é íntimo e não tem ninguém nesse mundaréu todo que possa fazer esse papel por você. Somos nós por nós mesmos, e isso não quer dizer que estejamos completamente sozinhos, muito menos que tal enfrentamento seja ruim e por isso precisamos correr o máximo possível disso. Não, pelo contrário, enxergar tudo o que nos representa no campo temporal é importante para que de forma honesta com nós mesmos possamos seguir em frente.
A dor constitui o processo, e muitos não estão dispostos a senti-la. Muitos vão fazer de tudo para que ela não se manifeste. No entanto, como distanciá-la e fazê-la sumir se ela fica maior e mais perniciosa a cada vez que a omitimos? Como prosseguir se o medo de olharmos para trás é mais forte do que a vontade de sorrir ao vislumbrar o horizonte que temos à frente? Como ressignificar novas experiências quando não nos permitimos aprender com as passadas?
Sem entrar no mérito de julgamento, já que cada pessoa lida de forma diferente com sua própria história, é justamente por isso que muitos dariam tudo para receber o tratamento pelo qual Clementine passou. As memórias não são coloridas os tempos todos eventualmente podem estar manchadas e cheias de odores desagradáveis. A questão é que, mesmo desestimulantes, fazem parte da gente. E Joel provavelmente percebeu isso antes de passar pelo tratamento na íntegra.
De um lado temos Clementine, que foi tomada pelo sentimento de desistência e não pode encarar o seu passado de forma que pudesse construir um outro futuro. Do outro, temos Joel, que a princípio pensou que seria melhor simplesmente esquecer tudo o que viveu ao lado dela, mas numa epifania proporcionada pelo próprio olhar sobre suas memórias percebeu que a solução não era essa.
O diretor do Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças brinca com os sentimentos ao mostrar como somos frágeis quando o assunto é se permitir. A leitura que é feita de nós mesmos vem muitas vezes de concepções externas, e quando paramos para refletir sobre a nossa própria percepção, não nos damos tamanha liberdade. E por que disso? Temos tanto medo de encararmos tudo o que vem com o sentimento de estar livre?
Joel desistiu do tratamento justamente porque ele se percebeu no meio da colcha de retalhos de tantas memórias vividas, talvez tenha percebido também que no fim das contas nós não somos feitos de carne, mas sim de lembranças. Logo, a dor, o remorso, a frustração e tudo o que parece desagradável são odores que fazem parte da gente e sem esses componentes nós não seríamos completos. O personagem de Joel representa a busca pelo sentido em existirmos diante de tantas turbulências ao mesmo tempo em que também representa a resposta para a própria pergunta. Joel é feito de memórias, assim como todos os seres humanos. Joel percebeu que turbulências são passageiras e que nós só existimos devido às memórias, que também são temporárias. Joel então se deu conta de que o ser humano é temporário e que nós temos pouquíssimo tempo para entendermos nossas memórias e transbordarmos liberdade.
Clementine é parte de Joel, assim como Joel é parte de Clementine. Mesmo separados, mesmo sem contato direto, as memórias os construíram e eles existem por meio delas. Perdê-las seria o mesmo que se perderem. Tudo o que teriam, seria um brilho fajuto que ficaria em loop infinito numa mente sem vestígios de humanidade. Te convido a assistir esse filme, mas não só uma vez.