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Crítica e Filosofia da literatura distópica

Faremos jus ao nome do quadro “Perdidos no Tempo”, pois falaremos de um gênero literário que não encontra lugar no presente. Um estilo que nunca se passa nos dias e na sociedade atual, mas que ao ser lido provoca aquela sensação de que qualquer semelhança com nossos tempos é mera coincidência. A distopia. O termo foi cunhado há anos por Gregg Webber e John Stuart Mill e têm conquistado novos admiradores.

De início, vamos clarificar essa expressão um pouco estranha. Distopia ou Antiutopia é o pensamento, a filosofia ou o processo discursivo baseado numa ficção cujo valor representa uma antítese às utopias, ou uma utopia negativa. Quem se atentou às aulas de filosofia do Ensino Médio, provavelmente se recorda de Thomas More. O filósofo imaginou, em 1516, pessoas vivendo em uma ilha em constante harmonia entre si e o meio ambiente, construindo juntos a sociedade perfeita. A esse devaneio, deu o nome de utopia. A título de curiosidade, a ilha em questão teria sido inspirada pelo arquipélago de Fernando de Noronha.

A história é envolvente, desenvolvida em uma trama de fantasia sonhadora. Claramente uma utopia, ou seja, um não lugar, espaço que não existe. Toda a crítica feita pelo autor com tal obra não impediu que a ideia de uma sociedade perfeita ficasse consolidada no imaginário de diversos outros autores.

As distopias aconteceram justamente para fazer oposição a tais ideias. George Orwell e Aldous Huxley foram autores que ajudaram a construir o novo gênero subversivo, mas a primeira pessoa a cunhar o termo foi John Stuart Mill em seu discurso frente à Câmara dos Comuns inglesa. Ele disse aos presentes que era muita honra chamá-los de utópicos, preferia usar a palavra distópicos, visto que uma utopia é boa demais para ser praticável.

George Orwell se tornou um grande autor do gênero. “1984” e a “Revolução dos Bichos” são exemplos de obras distópicas que ganharam força não só pela forma como foram escritas, mas também pela crítica social que fazem. “1984” retrata o cotidiano social em um regime político totalitário e repressivo.

A obra foi escrita em 1948 e se passa no ano que dá nome ao livro. Ela mostra como uma sociedade coletivista e oligárquica consegue reprimir qualquer tentativa de oposição. Tudo deveria ser feito coletivamente, todos viviam sobre a vigilância do grande irmão, uma alusão ao governo. Inclusive, o termo popular Big Brother vem dessa obra. Uma das frases mais marcantes do livro e que explica bem como funcionam as distopias é “só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade – só o poder pelo poder, puro poder”.

Aqui, podemos perceber traços sempre presentes nas obras distópicas. Elas oferecem uma crítica social e apresentam as simpatias políticas do autor, além de explorar a estupidez coletiva ou a forma que a sociedade se deixa manipular por aqueles que ocupam o poder. Ademais, são histórias que acontecem no futuro, mas que, a todo momento, conseguem gerar no leitor um incômodo devido aos questionamentos morais que permeiam as mentes. Os discursos e narrativas são sempre pessimistas, pois não há o desejo de iludir e provocar conforto ou esperança em quem lê.

A popularidade das distopias cresceu. Cineastas observaram a grande propensão que os textos tinham para serem traduzidos em imagens e desde muito tempo, histórias distópicas passaram a ser contadas nas grandes telas. Hoje, filmes de distopias ganharam tanta popularidade que a quantidade de obras aumentou consideravelmente. Entretanto, seria interessante discutir em outro momento se ao deixar-se apropriar pela indústria cultural, essas obras não acabam perdendo um pouco do valor e do seu motivo de ser.

Um exemplo muito é o best seller “Jogos Vorazes”. A trilogia ganhou adaptação para o cinema e a fama foi tamanha que tornou o filme um sucesso de bilheteria. O livro em si foi traduzido em diversas línguas e, hoje, ainda é possível ver jovens por aí se denominando tributos, mas o que essa obra tem de distópica?

“Hunger Games”, título original em inglês, conta a trajetória de Katniss Everdeen. Um ponto elogiado da obra é justamente o protagonismo feminino. Ela vive em um país chamado Panem. No livro não sabemos ao certo qual o ano em que tudo acontece, mas é claro que estamos em um futuro no qual Panem fica geograficamente localizado onde, hoje, temos os Estados Unidos.

Não existe mais o conceito de cidades. As regiões são divididas em distritos enumerados do um ao doze. Cada um possui uma atividade específica que ajuda a abastecer as demandas da capital. A protagonista, vive no distrito mais baixo, o doze, que abriga a classe dos mineradores. Todos os jovens e adultos que lá habitam são obrigados a trabalharem nas minas de carvão.

Há anos, ocorreu uma grande rebelião popular no país que levou a extinção do distrito treze e também a criação do que eles chamaram dos “Jogos Vorazes”. Anualmente, cada distrito deve enviar um menino e uma menina, que são chamados de “tributos”, para serem colocados em uma arena onde caçam e se matam mutuamente até que um sobreviva e saia vitorioso.

Contudo, no livro, na edição em que Katniss participou duas pessoas saíram vivas. O fato foi compreendido pela população como uma afronta ao governo e despertou no povo dominado e apático uma centelha de esperança e um espírito revolucionário. Daí temos uma das frases mais marcantes do livro: “toda revolução começa com uma faísca”.

Entretanto, essa história contada dessa forma não parece tanto com uma distopia. Vamos entender mais a fundo o que acontece. Primeiramente, temos um governo ditador e totalitário, uma população condicionada e reativa, tudo isso em um futuro não muito claro. Todavia, o fato de a protagonista subverter o governo e burlar os jogos fazendo o povo se levantar não faz com que a história migre para uma utopia.

O que acontece é que em todo momento podemos perceber a agonia de Katniss ao se tornar um símbolo de luta sem que ela tenha buscado por isso. Tudo que a garota queria era salvar a si e sua família. Além disso, depois de deixar a arena, ela e Peeta (outro sobrevivente) passam a ser usados como peças do jogo do governo para tentar amenizar os efeitos daqueles jogos na população.

Katniss sabe que aquilo é real. Sabe o que é estar em uma guerra e, durante a leitura, tudo fica muito evidente. Sabe que as pessoas que muitas vezes parecem lutar pelo bem, só querem mais uma vez ascenderem ao poder pela boa fé das pessoas. É como diz Finnick, um outro tributo, “eu me arrasto dos pesadelos todas as manhãs e descubro que não há nenhum alívio em estar acordado”.

“Jogos Vorazes” tenta retratar o que é a luta contra o governo, contra os valores morais e aponta que não há vencedores em uma guerra real, porque elas sempre deixam marcas, dor, e memórias ruins que não são esquecidas. Distopias nos fazem pensar, nos fazem compreender a sociedade em que vivemos e refletir criticamente sobre elas. Eu sou da opinião de que a leitura de obras distópicas deveria ser trazida para as escolas, tamanho impacto que esses livros causam naqueles que os lêem.

Se pudesse deixar uma dica, ela seria: leiam distopias. Livros são a prova de que os seres humanos são capazes de fazer mágica. Eu me atreveria a dizer que o verdadeiro feitiço desse estilo literário é fazer pensar.

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