Desde pequenos, a sociedade nos impõe certas normas de comportamentos, especificamente, no que diz respeito à nossa sexualidade e ao nosso gênero. Primeiramente, é necessário apontar que identidade de gênero e orientação sexual são coisas diferentes.
Em relação ao gênero, existem pessoas que se identificam como homens ou como mulheres, e outras que não se identificam como nenhum dos dois: são pessoas não binárias. Você pode ser cisgênero, ou seja, se identificar com o gênero que foi atribuído a você no seu nascimento; ou transexual, ou seja, se identificar com um gênero diferente do que foi imposto a você quando você nasceu.
Os gêneros são impostos às pessoas quando elas nascem através dos seus órgãos genitais. Todavia, o sistema reprodutor de uma pessoa não tem nada haver com o gênero dela. A identidade de gênero é, como o próprio nome diz, uma identidade. Ou seja, ela depende de nada além dos sentimentos e características da própria pessoa que a possui. Já a orientação sexual diz sobre as pessoas pelas quais alguém desenvolve atração sexual e/ou laços românticos. Uma pessoa heterossexual se atrai por quem possui o gênero diferente do dela, já uma homossexual se atrai por pessoas do mesmo gênero. Bissexuais se atraem por dois ou mais gêneros, e pansexuais se atraem por pessoas, independente do gênero. Existem, ainda, muitas outras orientações sexuais.
No nosso sistema de sociedade há uma divisão de papéis em que os garotos devem agir de uma maneira e as garotas de outra. Esse modelo de educação propaga o discurso conhecido como heteronormatividade, padrão de comportamento que categoriza outras formas de vivência, limitando as múltiplas sexualidades e formas de sentir.
Empregado na educação das crianças, esse discurso sexista resulta em adultos fechados para perceber, aceitar e conviver com comportamentos e características que fogem do que é o padrão e não estamos falando apenas de pessoas heterossexuais. O discurso sexista é tão forte que se espalha até mesmo dentro dos próprios movimentos que buscam justamente dar visibilidade para pessoas que não se enquadram em padrões. Irônico, né?
É preciso entender as normas como padrões sociais, morais e comportamentais, construídas social e historicamente, como se apenas aqueles que se enquadram nelas fossem normais, dignos de respeito e aceitáveis. Assumir-se gay, lésbica, bi, pan, ser transexual ou travesti, por exemplo, envolve antes de tudo, conhecer a si mesmo, ter amor próprio e auto-aceitação.
O princípio hetenormativo, contudo, pressupõe a identidade e a sexualidade do indivíduo antes mesmo que ele possa manifestar seus reais desejos, preferências e percepções. Como se todo o sentimento humano fosse filtrado em apenas um tipo de pensamento, um pensamento carregado do conservadorismo que o patriarcado proporcionou.
Todos os que fogem desta norma, em maior e menor grau, são discriminados e oprimidos simplesmente por não se adequarem a algo que não os compõe de verdade. Essa norma adentra os próprios movimentos LGBT, criando barreiras que invisibilizam identidades devido ao grande esforço que a sociedade faz para enquadrar sujeitos em uma das extremidades de gênero.
Mesmo conquistando espaços e direitos fundamentais dentro de um contexto opressor e tradicionalista, parcela da abre aspas minoria fecha aspas ainda não aceita formas de sentir que sejam diferentes das suas próprias. Sim, dentro do próprio movimento, existe preconceito e egoísmo, afinal as pessoas LGBT também fazem parte da sociedade que nos ensina, desde nosso nascimento, a odiar o diferente.
A sigla gay, por mais que ainda encontre grandes dificuldades causadas pela homofobia, vem ganhando cada vez mais força para mostrar que os padrões de comportamento são meras máscaras sociais construídas em cima de identidades diversas. Acontece que a visibilidade é contraditória, visto que geralmente são homens gays cisgêneros, brancos e ricos que ganham repercussão, o que leva a crer que os padrões ainda vigoram e estão intimamente ligados ao que é e o que não é aceitável. Dias Gomes é uma mulher transexual, estuda artes plásticas na UFG e tem muito a dizer sobre veneração da cultura gay dentro do movimento multifacetado que é o LGBT. Para ela, os padrões de comportamento estão impregnados no movimento LGBT de uma forma tão forte que os próprios homens gays normativos, ou seja, brancos, ricos e malhados reproduzem discurso sexista, misógino, gordofóbico, transfóbico e racista.
Sexista no sentido de rejeitar pessoas afeminadas. Misógino no sentido de repudiar características que remetem a ser mulher. Gordofóbico no sentido de renegar um corpo que escape dos modelos midiáticos, sempre magros ou cheios de músculos definidos. Transfóbico no sentido de repudiar, invisibilizar ou fazer piada com a existência das pessoas trangêneras. Por fim, racista no sentido de fetichizar a negritude. Esses são apenas exemplos gerais que fogem das demandas de pessoas fora do padrão comportamental aceitável.
Sutil ou diretamente, o movimento gay apaga bandeiras específicas por verem elas como “Diferentes demais. Não tão aceitáveis. Algo que não deve ser considerado tão real como a bandeira deles”. Pois o discurso heteronormativo pode ser absorvido dentro de identidades que escapam do padrão, assimilando características aceitáveis e expurgando tudo o que vai contra a norma.
A bissexualidade, por vezes, é completamente invisibilizada, como se fosse uma condição de privilégio ou uma característica momentânea que uma hora ou outra vai passar. Ela é resumida à uma fase turbulenta em que a pessoa se encontra “confusa com seus próprios sentimentos e desejos”.
E a pansexualidade então? É vista como coisa de outro mundo e olha que ela, antes de tudo, é uma maneira de mostrar que realmente não importa a identidade sexual ou o gênero dentro de um relacionamento. Somos seres humanos querendo ser felizes com outros seres humanos, sempre em busca de uma harmonia única, uma sintonia que corresponda à felicidade compartilhada. Existe algo mais humano?
Assim, o que poderia ser uma vitória conjunta do movimento, acaba apenas por reforçar comportamentos normativos. O movimento LGBT não diz respeito apenas à homossexualidade dentro de parâmetros normativos, por mais que ela também o integre. Como ficam as outras formas de sentir? De que adianta avançar em pautas restritas, que não desconstroem o discurso heteronormativo que afeta tantas e tantas pessoas cotidianamente? Tanto psicológica quanto fisicamente?
Não somos simplesmente humanos. Somos humanos com identidades que merecem ser respeitadas, não importa se essas identidades não correspondem com o que você entende como normal. Especificamente em um movimento onde as pautas tem a responsabilidade de abranger todas as múltiplas identidades de gênero e sexualidades.
A desconstrução do discurso normativo é diária e às vezes cansativa. Cansativa porque a modernidade nos trouxe certezas demais, a ponto de não enxergarmos que a experiência humana é múltipla e não deve ser enquadrada, limitada ou filtrada.
Dados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos indicam que, das 770 denúncias de violações contra pessoas LGBT registradas junto ao órgão regional de janeiro de 2013 a março de 2014, 55 ocorreram contra lésbicas ou mulheres com a leitura social pertencente à sigla L.
No Brasil, das mais de três mil denúncias feitas à Secretaria De Direitos Humanos envolvendo crimes homofóbicos, 37,79% teriam como vítimas lésbicas. Para o escritório da ONU sobre Direitos Humanos, o número pequeno de denúncias, se comparado aos casos de violência contra homens gays, indica que agressões contra lésbicas não estão sendo reportadas devidamente.
E a visibilidade, de uma forma ou de outra, está incluída na omissão da violência psicológica e física sofrida pelas pessoas que não correspondem à cultura dos homens gays. Desigualdades proporcionadas pelo patriarcado fazem com que violações não sejam percebidas como crimes. A invisibilidade apenas insiste no não pertencimento identitário.
As discussões de gênero e identidade, também, são extremamente pertinentes nesse sentido, pois a leitura do corpo como masculino e feminino designa a interpretação padrão do que é aceito em nossa sociedade. O gênero é pré-discursivo, dado antes do nascimento do sujeito, pressuposto.
Pessoas transexuais, travestis e não binárias são enquadradas dentro do que é chamado de disforia de gênero, ou seja, o discurso clínico onde a questão identitária é transformada em patologia. E as consequências da ignorância quanto ao sujeito e sua identidade? Violência simbólica. E no que acarreta essa ignorância? Em falta de visibilidade a demandas muito urgentes que precisam de uma abordagem que seja levada em conta. Vivemos em um país catastrófico quanto aos direitos humanos fundamentais, especificamente quando nos referimos às pautas de gênero e sexualidade. Proporcionar espaço digno para pessoas que não fazem parte da sigla G do movimento LGBT é crucial para avançar demandas que contribuam para a desconstrução do que é considerado normal dentro de uma sociedade culturalmente opressora.
Acima de qualquer outra coisa, somos sujeitos. Ninguém nasceu para ser coadjuvante de sua própria causa, em seu próprio movimento. Ouvir pessoas que não se sentem da mesma forma que você não é sacrifício algum, é questão de cidadania, empatia e respeito. A luta por visibilidade deve ser compreendida como uma luta pela diversidade e contra padrões homogêneos de comportamento.
É como Clarice Lispector escreveu uma vez, “eu te deixo ser, deixa-me ser então”. Mas deixa-me ser na minha multiplicidade, porque, no fim das contas, o único pressuposto que os seres humanos possuem em comum é a diferença.