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A agressão nossa de cada dia


Há quase uma semana, fala-se intensamente de uma expressão em decorrência à brutalidade acometida contra uma menina de dezesseis anos na cidade do Rio de Janeiro. O termo “cultura do estupro” foi usado pela primeira vez nos anos 1970, por ativistas da segunda onda do feminismo. Ele foi empregado como uma maneira de tentar explicar o porquê de o estupro ser um crime tão comum, ao contrário do que se imaginava. O estupro coletivo de uma jovem de dezesseis anos no Rio de Janeiro e a ampla divulgação do ato criminoso nas mídias sociais colocou em pauta a polêmica que gira em torno da cultura de estupro. Ou seja, do mecanismo de aceitação com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade, especificamente sobre a hierarquização do gênero de acordo com o patriarcado. Esse mesmo mecanismo fez com que os acusados do estupro da jovem do rio de janeiro sentissem conforto suficiente para publicarem fotos e um vídeo do crime pelo twitter. E essa mesma cultura também permitiu que amigos desses indivíduos ridicularizassem a vítima ao comentarem as mídias compartilhadas. Mas o que significa, na realidade, a cultura do estupro em nossa sociedade contemporânea?

Existe a normatização da superioridade de um gênero sobre o outro. A ideia da educação em prol da dominância do homem ainda se perpetua nos dias atuais dentro do nosso cotidiano e por vezes os partícipes da sociedade a tem como natural e inevitável. A educação é direcionada para que as meninas não “provoquem” um estupro sem ao menos levar adiante a discussão sobre a necessidade dos meninos não estuprarem. Ou seja, há um comportamento social que tende à culpabilização da mulher pelo estupro. Nesse caso, a vítima é responsabilizada pelo crime do qual ela sofreu. Por meio desse mecanismo que involuntariamente, as famílias e a própria sociedade como um todo mostram diariamente aos garotos que eles tem vantagens na vida, e que são sim, de certa forma, superiores. A intensificação da cultura do estupro é mediada por atos cotidianos pequenos e sutis que, em primeira instância, podem parecer meros detalhes que não suscitam grandes problemas. Tudo começa no ambiente familiar, no café da manhã, no almoço, no jantar ou até mesmo naquele churrasco onde surgem piadas “sem maldade”. Certamente, ninguém educa um filho para ser um estuprador, mas o sentimento de superioridade do homem pode estimular um imaginário perigoso que, por sua vez, pode se concretizar em um crime contra uma mulher.

A sociedade atual ainda é patriarcal e a figura feminina ainda é minorada, sendo vista como de modo estereotipado e estigmatizado. A reflexão sobre essa questão e seus desdobramentos e prejuízos para a sociedade é algo que tem ocorrido, especialmente no primeiro ambiente de socialização do indivíduo, ou seja no seu espaço familiar. Com isso, a cultura de superioridade de gênero e, consequentemente, a cultura do estupro continua viva, presente e atual. Até mesmo a controvérsia do tema pode ser explicada pela cultuação da ideia de hierarquização de gêneros. O reconhecimento de uma cultura que banaliza o estupro é algo negado com frequência. Como categoria sociológica, essa cultura ajuda a entender como é possível um crime hediondo ser costumeiramente tratado no viés de culpabilização da vítima e do sentimento de dúvida perante o ato criminoso e os dizeres de quem o sofreu. De acordo com a professora do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo, Silvana Nascimento, a mulher é desumanizada – não é sequer um objeto, é quase como se elas não fossem humanas. E se não forem humanas, são passíveis de estupro e assassinato. Tira-se, então, o direito da mulher sobre o corpo dela e ele se torna da família, do homem, da igreja e da lei, mas nunca dela mesma. A professora de antropologia ainda diz que as microviolências estão conectadas. O assédio nas ruas e essa violência física tem a ver com uma visão masculina que tende a ver o corpo da mulher como objeto de posse.

É o que também permite que se fale que ela é gostosa na rua e faça piadas depreciativas que só servem para mostrar que a cultura do estupro é parte do nosso cotidiano e que não está pautada em uma visão utópica e completamente fora da realidade que presenciamos. O estupro é um dos crimes mais subnotificados no mundo todo. No Brasil, de acordo com o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todos os anos 50 mil pessoas são estupradas. Mas acredita-se, contudo, que o número seja até 10 vezes maior. E o que motiva as omissões? O mecanismo que culpa a mulher pelo estupro faz com que ela também se sinta culpada pela violência que sofreu ao mesmo tempo que sente vergonha em denunciar devido à existência do valor da mulher atrelado ao seu corpo e à não violação dele. E mesmo se houver a denúncia, não há aparatos institucionais de denúncia e atendimento preparados para lidar com crimes dessa natureza. As delegacias especializadas em crimes contra a mulher, que geralmente estão melhor preparadas para receber e investigar esse tipo de denúncia, estão sucateadas e são poucas visto que menos de 10% dos municípios do país têm delegacias especializadas em crimes contra a mulher.

Há também a pressão por parte de grupos políticos e religiosos que persistem em projetos de lei para limitar os direitos das mulheres em caso de estupros. O projeto de lei 5069/2013 que foi aprovado em outubro de 2015 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos deputados dificulta a realização do aborto em caso de estupro e penaliza qualquer pessoa que oriente a mulher sobre as possibilidades legais do aborto. Além disso, exige que a vítima faça boletim de ocorrência e exame de corpo de delito antes de ter direito a procedimentos como a pílula do dia seguinte, orientações psicológicas e remédios que evitem ou diminuem as chances de contaminação por DST’s. O estupro de uma mulher é a expressão mais radical do sentimento de superioridade provido pela cultura de dominância masculina, mas não se pode analisar a conjuntura tomando apenas as fatalidades visíveis como critérios máximos. Os detalhes, que se originam no ambiente familiar e passam pela escola, pela igreja e pela segurança pública, também precisam ser observadas como condições que favorecem consequências extremas. Há uma dificuldade no combate ao estupro se os homens forem sempre postos como superiores e o machismo continuar sendo temática trivial. Enquanto a ideia da luta pelo respeito à igualdade de gênero continuar no imaginário da sociedade como uma luta segregacional e não de justiça, segurança pública e dignidade humana, a cultura de estupro tende a continuar viva e contemporânea.


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